A Lavagem do Cais do Valongo é mais do que uma cerimônia simbólica. É um poderoso ato de resistência cultural e religiosa, realizado anualmente no último sábado de julho, no coração da região portuária do Rio de Janeiro. A cada edição, o evento reúne religiosos de matriz africana, movimentos sociais e a população em geral para celebrar, purificar e lembrar.
O ritual consiste na lavagem das pedras do cais com água de cheiro, flores e cânticos em iorubá, numa reverência espiritual aos africanos escravizados que por ali passaram. A prática, liderada pela Iyalorixá Edelzuita de Oxaguian, foi iniciada em 2011, logo após descobertas arqueológicas revelarem restos mortais de africanos no sítio. Desde então, tornou-se um marco anual de preservação da memória afro-brasileira.
O Cais do Valongo é reconhecido pela Unesco como Patrimônio da Humanidade. E não é à toa: o local carrega cicatrizes profundas do tráfico transatlântico de escravizados. A lavagem, portanto, é também um gesto político, um chamado coletivo à reparação, respeito e justiça histórica.
Pequena África: onde pulsa a história negra do Rio
A cerimônia acontece em uma área de imenso valor histórico: a chamada Pequena África, que abrange os bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo. Essa região foi um dos principais pontos de desembarque de africanos escravizados durante séculos, além de berço da cultura afro-brasileira e do samba.
Pontos como a Pedra do Sal, o Cemitério dos Pretos Novos e o Centro Cultural José Bonifácio integram esse circuito de memória. A presença de terreiros, blocos afro e rodas de samba reforça a conexão viva com os saberes, sons e espiritualidade de matrizes africanas. É nesse solo que a lavagem acontece, relembrando os ancestrais e honrando sua trajetória.
Não se trata apenas de revisitar o passado. A Pequena África é também um território de luta, educação e expressão cultural. O ato de lavar o cais, assim, reafirma o papel central da população negra na construção do Brasil – algo que a história oficial muitas vezes omite ou silencia.
Ritual de limpeza e renovação espiritual
O ponto alto da celebração é a lavagem das pedras do Cais do Valongo. Guiada por lideranças religiosas, como Edelzuita de Oxaguian, a cerimônia começa com a concentração às 9h da manhã. Os participantes, vestidos de branco e carregando flores, seguem em cortejo desde as Docas até o cais, entoando cânticos e saudando os orixás.
A água de cheiro, preparada com ervas sagradas, é usada na purificação do local. Cada gesto é carregado de simbolismo: limpar o chão onde o sofrimento ocorreu, plantar esperança e manter viva a força dos que resistiram. Não é apenas um ritual religioso, mas também uma expressão de fé na continuidade da luta antirracista.
Participam do cortejo grupos como os Filhos de Gandhi, Afoxé Filhos de Angola, Mariamas e Filhas de Gandhi. O som dos atabaques, o perfume das flores e a força das cantigas criam uma atmosfera de respeito e espiritualidade que transforma a paisagem urbana em um espaço sagrado.
Programação cultural e debates sociais
Além da lavagem, o evento oferece uma rica programação cultural e política. Durante todo o dia, acontecem atividades no entorno do cais que valorizam a cultura afro-brasileira e promovem reflexões sobre o presente.
Entre as atrações, estão visitas guiadas ao sítio arqueológico, apresentações de samba de roda e jongo com o grupo Identidade Preta, rodas de capoeira e o Sarau da Pequena África, com poesia e música. É uma verdadeira celebração da identidade negra em suas múltiplas expressões.
A programação inclui também uma mesa de debate com o tema: “O Brasil que a gente construiu: políticas públicas e caminhos para uma sociedade antirracista”. Participam lideranças religiosas, representantes de movimentos sociais e autoridades públicas. É um espaço para discutir avanços, desafios e estratégias de inclusão e reparação histórica.
O papel do povo de terreiro na preservação da memória
O protagonismo da Lavagem do Cais do Valongo está nas mãos do povo de terreiro. São eles que mantêm viva a tradição, conduzem os ritos e educam a sociedade sobre a importância da ancestralidade e da espiritualidade afro-brasileira.
Em tempos de intolerância religiosa e racismo estrutural, o ato de ocupar o espaço público com tambores, ervas e cantos é um gesto de coragem e resistência. É dizer: “nossos ancestrais importam, nossa fé tem valor, nossa história precisa ser lembrada.”
A valorização das religiões de matriz africana é, também, uma forma de construir pontes de respeito entre diferentes culturas. A presença do candomblé, da umbanda e de outras expressões afro-religiosas no evento amplia o entendimento do Brasil como um país diverso, plural e profundamente conectado à África.
Um ato político e cultural de resistência
Mais do que um evento tradicional, a Lavagem do Cais do Valongo é um ato político. Ela afirma a dignidade da população negra, exige respeito às memórias apagadas e reivindica espaços de protagonismo nas políticas públicas.
Ao reunir cultura, fé e ativismo, o evento transforma o centro do Rio em um grande palco de resistência. É uma resposta simbólica à exclusão histórica, aos preconceitos cotidianos e à tentativa de silenciar as vozes negras.
A cada flor depositada nas pedras do cais, reafirma-se um compromisso coletivo com a reparação e a justiça. A cada passo do cortejo, caminha-se rumo a um país mais consciente da própria história. A cada cântico, escuta-se a força dos que vieram antes e dos que ainda lutam por um futuro mais igualitário.
A importância do reconhecimento internacional
O Cais do Valongo foi reconhecido como Patrimônio Mundial pela Unesco em 2017. Esse título reforça a relevância do local não apenas para o Brasil, mas para toda a humanidade. É um dos poucos vestígios físicos do desembarque de africanos escravizados ainda existentes no mundo.
Esse reconhecimento traz visibilidade e também responsabilidade. É necessário manter o local preservado, promover pesquisas arqueológicas contínuas e garantir que sua história seja contada de forma acessível, principalmente para as novas gerações.
A Lavagem do Valongo é, nesse contexto, um instrumento de educação patrimonial. Ela transforma a memória em movimento, e o patrimônio em experiência viva. É um lembrete de que a escravidão deixou marcas profundas, mas que a resistência também é parte essencial dessa narrativa.
Um convite à participação coletiva
A Lavagem do Cais do Valongo é aberta ao público e convida a sociedade a participar de forma ativa. Vestir branco, levar flores e caminhar junto aos religiosos e ativistas é um gesto de empatia, respeito e engajamento com a luta antirracista.
Para muitos, o evento é também um momento de cura, reconexão e aprendizado. É uma oportunidade de conhecer mais sobre a cultura afro-brasileira, sobre os valores das religiões de matriz africana e sobre o verdadeiro papel da população negra na história nacional.
A celebração não é apenas dos terreiros. É de todos os que acreditam em justiça, memória, cultura e igualdade. Participar da lavagem é reconhecer o passado e ajudar a construir um futuro mais justo, onde todas as vozes possam ser ouvidas.
Conclusão: memória que se faz presente
A Lavagem do Cais do Valongo é um acontecimento que atravessa o tempo. É memória, mas também é presente. É rito, mas também é política. É ancestralidade, mas também é futuro.
Em cada edição, ela reafirma que a história negra não pode ser apagada, que os espaços de dor podem se transformar em lugares de celebração e que a espiritualidade pode ser uma ferramenta poderosa de resistência e reconstrução.
Mais do que lavar pedras, o evento purifica consciências e renova compromissos com uma sociedade mais justa. É um chamado para que a memória dos que vieram antes de nós nunca seja esquecida.
Perguntas frequentes (FAQs)
1. O que é a Lavagem do Cais do Valongo?
É um ritual anual de purificação e homenagem aos ancestrais africanos, realizado por religiosos de matriz africana no centro do Rio de Janeiro.
2. Quando acontece a Lavagem do Cais do Valongo?
O evento é realizado no último sábado de julho, reunindo cortejos, rituais e programação cultural ao longo do dia.
3. Qual o significado espiritual do ritual?
A lavagem representa a limpeza simbólica do local com água de cheiro, flores e cânticos, em respeito aos espíritos dos africanos escravizados.
4. Quem organiza a cerimônia?
A lavagem é realizada pelo Instituto INAEOSSTECAB, com apoio de entidades como o Iphan, Prefeitura do Rio e organizações do movimento negro.
5. Onde fica o Cais do Valongo?
Localizado na região da Pequena África, no centro do Rio, o Cais do Valongo é um sítio arqueológico reconhecido como Patrimônio da Humanidade pela Unesco.
6. A participação é aberta ao público?
Sim. Todos podem participar, especialmente vestindo branco e levando flores, em sinal de respeito e conexão com os ancestrais.
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SERVIÇO
Lavagem do Cais do Valongo
Data: 26/07/2025
Local: Cais do Valongo
Saúde – Rio de Janeiro – RJ
Horário: 9 horas

Andre Borges, historiador e pesquisador sobre o Rio de Janeiro. Eu sempre gostei da história do Rio de Janeiro, queria contribuir para a cidade, mas não sabia como, queria uma maneira lúdica de contar a história desta cidade e informar, aí veio a ideia do Blog Giro 0800.